Queridos Irmãos no Episcopado, amados sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos. Queridos observadores de outras confissões religiosas:
É motivo de grande alegria estar hoje aqui convosco para inaugurar a V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, que se celebra junto ao Santuário de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil. Quero que minhas primeiras palavras sejam de ação de graças e de louvor a Deus pelo grande dom da fé cristã aos povos deste Continente.
1.A fé cristã na América Latina
A fé em Deus animou a vida e a cultura destes povos durante mais de cinco séculos. Do encontro dessa fé com as etnias originárias nasceu a rica cultura cristã deste Continente expressada na arte, na música, na literatura e, sobretudo, nas tradições religiosas e na idiossincrasia de seus povos, unidas a uma mesma história e um mesmo credo, e formando uma grande sintonia na diversidade de culturas e de línguas. Na atualidade, essa mesma fé deve enfrentar sérios desafios, pois estão em jogo o desenvolvimento harmônico da sociedade e a identidade católica de seus povos. A respeito disso, a V Conferência Geral vai refletir sobre esta situação para ajudar os fiéis cristãos a viverem sua fé com alegria e coerência, a tomar consciência de ser discípulos e missionários de Cristo, enviados por Ele ao mundo para anunciar e dar testemunho de nossa fé e amor.
Mas, que significou a aceitação da fé cristã para os povos da América Latina e do Caribe? Para eles, significou conhecer e acolher Cristo, o Deus desconhecido que seus antepassados, sem saber, buscavam em suas ricas tradições religiosas. Cristo era o Salvador que ansiavam silenciosamente. Significou também ter recebido, com as águas do batismo, a vida divina que os tornou filhos de Deus por adoção; ter recebido também o Espírito Santo que veio para fecundar suas culturas, purificando-as e desenvolvendo os numerosos germens e sementes que o Verbo encarnado havia posto nelas, orientado-as assim pelos caminhos do Evangelho. Com efeito, o anúncio de Jesus e de seu Evangelho não supôs, em nenhum momento, uma alienação das culturas pré-colombinas, nem foi uma imposição de uma cultura estranha. As autênticas culturas não estão fechadas em si mesmas nem petrificadas em um determinado ponto da história, mas estão abertas, mais ainda, buscam o encontro com outras culturas, esperam alcançar a universalidade no encontro e no diálogo com outras formas de vida e com os elementos que possam levar a uma nova síntese na qual se respeite sempre a diversidade das expressões e de sua realização cultural concreta.
Em última instância, só a verdade unifica e sua prova é o amor. Por isso Cristo, sendo realmente o Logos encarnado, «o amor até o extremo», não é alheio a cultura alguma nem a nenhuma pessoa; pelo contrário, a resposta ansiada no coração das culturas é o que lhes dá sua identidade última, unindo a humanidade e respeitando por sua vez a riqueza das diversidades, abrindo todos ao crescimento na verdadeira humanização, no autêntico progresso. O Verbo de Deus, fazendo-se carne em Jesus Cristo, tornou-se também história e cultura.
A utopia de voltar a dar vida às religiões pré-colombinas, separando-as de Cristo e da Igreja universal, não seria um progresso, mas um retrocesso. Na realidade, seria uma involução para um momento histórico ancorado no passado.
A sabedoria dos povos originários os levou felizmente a formar uma síntese entre suas culturas e a fé cristã que os missionários lhes ofereciam. Daí nasceu a rica e profunda religiosidade popular, na qual aparece a alma dos povos latino-americanos:
-- O amor a Cristo sofredor, o Deus da compaixão, do perdão e da reconciliação; o Deus que nos amou até entregar-se por nós;
-- O amor ao Senhor presente na Eucaristia, o Deus encarnado, morto e ressuscitado para ser Pão da Vida;
-- O Deus próximo dos pobres e dos que sofrem;
-- A profunda devoção A Nossa Senhora de Guadalupe, de Aparecida ou das diversas invocações nacionais e locais. Quando a Virgem de Guadalupe apareceu ao índio São Juan Diego, disse-lhe estas significativas palavras: «Não estou eu aqui que sou tua mãe? Não estás sob minha proteção? Não sou eu a fonte de tua alegria? Não estás sob meu manto, no cruzar de meus braços?» (Nican Mopohua, nn. 118-119).
Esta religiosidade se expressa também na devoção aos santos com suas festas patronais, no amor ao Papa e aos demais Pastores, no amor à Igreja universal como grande família de Deus que nunca pode nem deve deixar a sós ou na miséria seus próprios filhos. Tudo isso forma o grande mosaico da religiosidade popular que é o precioso tesouro da Igreja Católica na América Latina, e que ela deve proteger, promover e, no que for necessário, também purificar.
2.Continuidade com as outras Conferências
Esta V Conferência Geral se celebra em continuidade com as outras quatro que a precederam no Rio de Janeiro, Medellín, Puebla e Santo Domingo. Com o mesmo espírito que as animou, os Pastores querem dar agora um novo impulso à evangelização, a fim de que estes povos continuem crescendo e amadurecendo em sua fé, para ser luz do mundo e testemunhas de Jesus Cristo com a própria vida.
Depois da IV Conferência Geral, em Santo Domingo, muitas coisas mudaram na sociedade. A Igreja, que participa dos gozos e esperanças, das penas e alegrias de seus filhos, quer caminhar a seu lado neste período de tantos desafios, para infundir-lhes sempre esperança e consolo (cf. Gaudium et spes, 1).
No mundo de hoje se dá o fenômeno da globalização como um conjunto de relações no âmbito mundial. Ainda que em certos aspectos é uma conquista da grande família humana e um sinal de sua profunda aspiração à unidade, contudo comporta também a marca dos grandes monopólios e de converter o lucro em valor supremo. Como em todos os campos da atividade humana, a globalização deve reger-se também pela ética, pondo tudo ao serviço da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus.
Na América Latina e no Caribe, assim como em outras religiões, evoluiu-se para a democracia, ainda que há motivos de preocupação ante formas de governo autoritárias ou sujeitas a certas ideologias que eram consideradas superadas, e que não correspondem à visão cristã do homem e da sociedade, como nos ensina a Doutrina Social da Igreja. Por outra parte, a economia liberal de alguns países latino-americanos deve ter presente a equidade, pois continuam aumentando os setores sociais que se vêem provados cada vez mais por uma enorme pobreza ou inclusive espoliados dos próprios bens naturais.
Nas Comunidades eclesiais da América Latina é notável a maturidade na fé de muitos leigos e leigas ativos e entregues ao Senhor, junto com a presença de muitos abnegados catequistas, de tantos jovens, de novos movimentos eclesiais e de recentes Institutos de vida consagrada. Demonstram-se fundamentais muitas obras católicas educativas, assistenciais e hospitalares. Percebe-se, contudo, um certo enfraquecimento da vida cristã no conjunto da sociedade e da própria pertença à Igreja Católica, devido ao secularismo, ao hedonismo, ao indiferentismo e ao proselitismo de numerosas seitas, de religiões animistas e de novas expressões pseudo-religiosas.
Tudo isso configura uma situação nova que será analisada aqui, em Aparecida. Ante a nova encruzilhada, os fiéis esperam desta V Conferência uma renovação e revitalização de sua fé em Cristo, nosso único Mestre e Salvador, que nos revelou a experiência única do Amor infinito de Deus Pai aos homens. Desta fonte poderão surgir novos caminhos e projetos pastorais criativos, que infundam uma firme esperança para viver de maneira responsável e gozosa a fé e irradiá-la assim no próprio ambiente.
3.Discípulos e missionários
Esta Conferência Geral tem como tema: «Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nossos povos n’Ele tenham vida -- Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida» (Jo 14, 6).
A Igreja tem a grande tarefa de custodiar e alimentar a fé do Povo de Deus, e recordar também aos fiéis deste Continente que, em virtude de seu batismo, estão chamados a ser discípulos e missionários de Jesus Cristo. Isso leva segui-lo, viver em intimidade com Ele, imitar seu exemplo e dar testemunho. Todo batizado recebe de Cristo, como os Apóstolos, o mandato da missão: «Ide por todo o mundo e proclamai a Boa Nova a toda criatura. Quem crer e for batizado, será salvo» (Mc 16, 15). Pois ser discípulos e missionários de Jesus Cristo e buscar a vida «n’Ele» supõe estar profundamente enraizados n’Ele.
O que nos dá Cristo realmente? Por que queremos ser discípulos de Cristo? Porque esperamos encontrar na comunhão com Ele a vida, a verdadeira vida digna deste nome, e por isso queremos dá-lo a conhecer aos demais, comunicar-lhes o dom que encontramos n’Ele. Mas isso é assim? Estamos realmente certos de que Cristo é o caminho, a verdade e a vida?
Ante a prioridade da fé em Cristo e da vida «n’Ele», formulada no título desta V Conferência, poderia surgir também outra questão: Esta prioridade, não poderia ser acaso uma fuga para o intimismo, para o individualismo religioso, um abandono da realidade urgente dos grandes problemas econômicos, sociais e políticos da América Latina e do mundo, e uma fuga da realidade para um mundo espiritual?
Como primeiro passo podemos responder a esta pergunta com outra: O que é esta «realidade»? O que é o real? São «realidade» só os bens materiais, os problemas sociais, econômicos e políticos? Aqui está precisamente o grande erro das tendências dominantes no último século, erro destrutivo, como demonstram os resultados tanto dos sistemas marxistas como inclusive dos capitalistas. Falsificam o conceito de realidade com a amputação da realidade fundante, e por isso decisiva, que é Deus. Quem exclui Deus de seu horizonte falsifica o conceito de «realidade» e, em conseqüência, só pode terminar em caminhos equivocados e com receitas destrutivas.
A primeira afirmação fundamental é, pois, a seguinte: Só quem reconhece Deus, conhece a realidade e pode responder a ela de modo adequado e realmente humano. A verdade dessa tese é evidente ante o fracasso de todos os sistemas que colocam Deus entre parênteses.
Mas surge imediatamente outra pergunta: Quem conhece Deus? Como podemos conhecê-lo? Não podemos entrar aqui em um complexo debate sobre esta questão fundamental. Para o cristão, o núcleo da resposta é simples: Só Deus conhece Deus, só seu Filho que é Deus de Deus, Deus verdadeiro, o conhece. E ele, «que está no seio do Pai, o revelou» (Jo 1, 18). Daí a importância única e insubstituível de Cristo para nós, para a humanidade. Se não conhecemos Deus em Cristo e com Cristo, toda a realidade se converte em um enigma indecifrável; não há caminho e ao não haver caminho, não há vida nem verdade.
Deus é a realidade fundante, não um Deus só pensado ou hipotético, mas o Deus de rosto humano; é o Deus -- conosco, o Deus do amor até a cruz. Quando o discípulo chega à compreensão deste amor de Cristo «até o extremo», não pode deixar de responder a este amor se não é com um amor semelhante: «Eu te seguirei por onde quer que fores» (Lc 9, 57).
Ainda podemos fazer outra pergunta: O que nos dá a fé nesse Deus? A primeira resposta é: nos dá uma família, a família universal de Deus na Igreja Católica. A fé nos liberta do isolamento do eu, porque nos leva à comunhão: o encontro com Deus é, em si mesmo e como tal, encontro com os irmãos, um ato de convocação, de unificação, de responsabilidade para com o outro e para com os demais. Neste sentido, a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza (cf. 2 Co 8, 9).
Mas antes de falar do que comporta o realismo da fé no Deus feito homem, temos de aprofundar na pergunta: como conhecer realmente Cristo para poder segui-lo e viver com Ele, para encontrar a vida n’Ele e para comunicar esta vida aos outros, à sociedade e ao mundo? Antes de tudo, Cristo se dá a conhecer a nós em sua pessoa, em sua vida e em sua doutrina por meio da Palavra de Deus. Ao iniciar a nova etapa que a Igreja missionária da América Latina e do Caribe se dispõe a empreender, a partir desta V Conferência Geral em Aparecida, é condição indispensável o conhecimento profundo da Palavra de Deus. Por isso, é preciso educaro povo na leitura e meditação da Palavra de Deus: que ela se converta em seu alimento para que, por própria experiência, vejam que as palavras de Jesus são espírito e vida (cf. Jo 6, 63). Do contrário, como vão anunciar uma mensagem cujo conteúdo e espírito não conhecem a fundo? Temos que fundamentar nosso compromisso missionário e toda nossa vida na rocha da Palavra de Deus. Para isso, animo os Pastores a esforçar-se em dá-la a conhecer.
Um grande meio para introduzir o Povo de Deus no mistério de Cristo é a catequese. Nela se transmite de forma simples e substancial a mensagem de Cristo. Convirá, portanto, intensificar a catequese e a formação na fé, tanto das crianças como dos jovens e adultos. A reflexão madura da fé é luz para o caminho da vida e força para ser testemunhas de Cristo. Para isso se dispõe de instrumentos muito valiosos como o Catecismo da Igreja Católica e sua versão mais breve, o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica.
Neste campo, não se deve limitar só às homilias, conferências, cursos de Bíblia ou teologia, mas é preciso recorrer também aos meios de comunicação: imprensa, rádio e televisão, sites da internet, foros e tantos outros sistemas para comunicar eficazmente a mensagem de Cristo a um grande número de pessoas.
Neste esforço por conhecer a mensagem de Cristo e torná-la guia da própria vida, é preciso recordar que a evangelização esteve sempre unida à promoção humana e à autêntica libertação cristã. «Amor a Deus e amor ao próximo se fundem entre si: no mais humilde encontramos o próprio Jesus e em Jesus encontramos Deus» (Deus caritas est, 15). Por isso, será também necessária uma catequese social e uma adequada formação na doutrina social da Igreja, sendo muito útil para isso o «Compêndio da Doutrina Social da Igreja». A vida cristã não se expressa somente nas virtudes pessoais, mas também nas virtudes sociais e políticas.
O discípulo, fundamentado assim na rocha da Palavra de Deus, sente-se impulsionado a levar a Boa Nova da salvação a seus irmãos: Discipulado e missão são como os dois lados de uma mesma moeda: quando o discípulo está enamorado de Cristo, não pode deixar de anunciar ao mundo que só Ele nos salva (cf. Atos 4, 12). Com efeito, o discípulo sabe que sem Cristo não há luz, não há esperança, não há amor, não há futuro.
4.«Para que n’Ele tenham vida»
Os povos latino-americanos e caribenhos têm direito a uma vida plena, própria dos filhos de Deus, com condições mais humanas: livres das ameaças da fome e de toda forma de violência. Para estes povos, seus Pastores devem fomentar uma cultura da vida que permita, como dizia meu predecessor Paulo VI, «passar da miséria à posse do necessário, à aquisição da cultura... à cooperação no bem comum... até o reconhecimento, por parte do homem, dos valores supremos e de Deus, que deles é a fonte e o fim» (Populorum progressio, 21).
Neste contexto, é-me grato recordar a Encíclica «Populorum progressio», cujo 40º aniversário recordamos este ano. Este documento pontifício evidencia que o desenvolvimento autêntico deve ser integral, ou seja, orientado à promoção de todo o homem e de todos os homens (cf. n. 14), e convida todos a suprimirem as graves desigualdades sociais e as enormes diferenças no acesso aos bens. Estes povos anseiam, sobretudo, a plenitude de vida que Cristo nos trouxe: «Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância» (Jo 10, 10). Com esta vida se desenvolve também em plenitude a existência humana, em sua dimensão pessoal, familiar, social e cultural.
Para formar o discípulo e sustentar o missionário em sua grande tarefa, a Igreja lhes oferece, além do Pão da Palavra, o Pão da Eucaristia. A respeito disso, inspira-nos e ilumina a página do Evangelho sobre os discípulos de Emaús. Quando estes se sentam à mesa e recebem de Jesus Cristo o pão abençoado e partido, seus olhos se abrem, descobrem o rosto do Ressuscitado, sentem em seu coração que é verdade tudo o que Ele disse e fez, e que já começou a redenção do mundo. Cada domingo e cada Eucaristia é um encontro pessoal com Cristo. Ao escutar a Palavra divina, o coração arde porque é Ele quem a explica e proclama. Quando na Eucaristia se parte o pão, é a Ele a quem se recebe pessoalmente. A Eucaristia é o alimento indispensável para a vida do discípulo e missionário de Cristo.
A Missa dominical, centro da vida cristã
Daí a necessidade de dar prioridade, nos programas pastorais, à valorização da Missa dominical. Temos de motivar os cristãos para que participem dela ativamente e, se é possível, melhor ainda com a família. A assistência dos pais com seus filhos à celebração eucarística dominical é uma pedagogia eficaz para comunicar a fé e um estreito vínculo que mantém a unidade entre eles. O domingo significou, ao longo da vida da Igreja, o momento privilegiado do encontro das comunidades com o Senhor ressuscitado.
É necessário que os cristãos experimentem que não seguem um personagem da história passada, senão o Cristo vivo, presente no hoje e no agora de suas vidas. Ele é o Vivente que caminha ao nosso lado, descobrindo-nos o sentido dos acontecimentos, da dor e da morte, da alegria e da festa, entrando em nossas casas e permanecendo nelas, alimentando-nos com o Pão que dá a vida. A Eucaristia deve ser o centro da vida cristã.
O encontro com Cristo na Eucaristia suscita o compromisso da evangelização e o impulso à solidariedade; desperta no cristão o forte desejo de anunciar o Evangelho e testemunhá-lo na sociedade para que ela seja mais justa e humana. Da Eucaristia brotou ao longo dos séculos um imenso caudal de caridade, de participação nas dificuldades dos outros, de amor e de justiça. Só da Eucaristia brotará a civilização do amor, que transformará a América Latina e o Caribe para que, além de ser o Continente da Esperança, seja também o continente do Amor!
Os problemas sociais e políticos
Chegados a este ponto podemos nos perguntar como pode a Igreja contribuir para a solução dos urgentes problemas sociais e políticos, e responder ao grande desafio da pobreza e da miséria? Os problemas da América latina e do Caribe, assim como do mundo de hoje, são múltiplos e complexos, e não pode ser enfrentados com programas gerais. Contudo, a questão fundamental sobre o modo como a Igreja, iluminada pela fé em Cristo, deva reagir diante desses desafios, nos concerne a todos. Neste contexto é inevitável falar do problema das estruturas, sobretudo, das que criam injustiça. Na verdade, as estruturas justas são uma condição sem a qual não é possível uma ordem justa na sociedade. Mas, como nascem? Como funcionam?
Tanto o capitalismo como o marxismo prometeram encontrar o caminho para a criação de estruturas justas e afirmaram que estas, uma vez estabelecidas, funcionariam por si mesmas; afirmaram que não só não haviam tido a necessidade de uma precedente moralidade individual, mas elas fomentariam a moralidade comum. E esta promessa ideológica se demonstrou que é falsa. Os fatos o colocam de manifesto. O sistema marxista, onde governou, não só deixou uma triste herança de destruições econômicas e ecológicas, mas também uma dolorosa destruição do espírito. E o mesmo vemos também no ocidente, onde cresce constantemente a distância entre pobres e ricos e se produz uma inquietante degradação da dignidade pessoal com a droga, o álcool e as sutis miragens de felicidade.
As estruturas justas são, como disse, uma condição indispensável para uma sociedade justa, mas não nascem nem funcionam sem um consenso moral da sociedade sobre os valores fundamentais e sobre a necessidade de viver estes valores com as necessárias renúncias, inclusive o interesse pessoal.
Onde Deus está ausente – o Deus do rosto humano de Jesus Cristo – estes valores não se mostram com toda sua força, nem se produz um consenso sobre eles. Não quero dizer que os não crentes não possam viver uma moralidade elevada e exemplar; digo somente que uma sociedade na qual Deus está ausente não encontra o consenso necessário sobre os valores morais e a força para viver segundo a pauta destes valores, mesmo contra os próprios interesses.
Por outro lado, as estruturas justas hão de ser buscadas e elaboradas à luz dos valores fundamentais, com todo o empenho da razão política, econômica e social. São uma questão da reta ratio e não provém de ideologias nem de promessas. Certamente existe um tesouro de experiências políticas e de conhecimentos sobre os problemas sociais e econômicos, que evidenciam elementos fundamentais de um estado justo e os caminhos que se têm de evitar. Mas em situações culturais e políticas diversas, e em transformação progressiva das tecnologias e da realidade histórica mundial, há que se buscar, de maneira racional, as respostas adequadas e deve se criar – com os compromissos indispensáveis – o consenso sobre as estruturas que hão de se estabelecer.
Este trabalho político não é competência imediata da Igreja. O respeito de uma sã laicidade – até mesmo com a pluralidade das posições políticas – é essencial na tradição cristã autêntica. Se a Igreja começasse a se transformar diretamente em sujeito político, não faria mais pelos pobres e pela justiça, mas faria menos, porque perderia sua independência e sua autoridade moral, identificando-se com uma única via política e com posições parciais opináveis. A Igreja é advogada da justiça e dos pobres, precisamente ao não identificar-se com os políticos nem com os interesses de partido. Só sendo independente pode ensinar os grandes critérios e os valores irrevogáveis, orientar as consciências e oferecer uma opção de vida que vai alem do âmbito político. Formar as consciências, ser advogada da justiça e da verdade, educar nas virtudes individuais e políticas, é a vocação fundamental da Igreja neste setor. E os leigos católicos devem ser conscientes de sua responsabilidade na vida pública; devem estar presentes na formação dos consensos necessários e na oposição contra as injustiças.
As estruturas justas jamais serão completas de modo definitivo; pela constante evolução da história, hão de ser sempre renovadas e atualizadas; hão de estar animadas sempre por um «ethos» político e humano, por cuja presença e eficiência se há de trabalhar sempre. Com outras palavras, a presença de Deus, a amizade com o Filho de Deus encarnado, a luz de sua Palavra, são sempre condições fundamentais para a presença e eficiência da justiça e do amor em nossas sociedades.
Por tratar-se de um Continente de batizados, convém preencher a notável ausência, no âmbito político, comunicativo e universitário, de vozes e iniciativas de lideres católicos de forte personalidade e de vocação abnegada, que sejam coerentes com suas convicções éticas e religiosa. Os movimentos eclesiais têm aqui um amplo campo para recordar aos leigos sua responsabilidade e sua missão de levar a luz do Evangelho à vida pública, cultura, econômica e política.
5. Outros campos prioritários
Para levar a cabo a renovação da Igreja a vós confiada nestas terras, eu gostaria de fixar a atenção convosco sobre alguns campos que considero prioritários nesta nova etapa.
A família
A família, «patrimônio da humanidade», constitui um dos tesouros mais importantes dos povos latino-americanos. Ela foi e é escola da fé, palestra de valores humanos e cívicos, lar em que a vida humana nasce e é acolhida generosa e responsavelmente. No entanto, na atualidade sofre situações provocadas pelo secularismo e pelo relativismo ético, pelos diversos fluxos migratórios internos e externos, pela pobreza, pela instabilidade social e por legislações civis contrárias ao matrimônio que, ao favorecer os anticoncepcionais e o aborto, ameaçam o futuro dos povos.
Em algumas famílias da América Latina, persiste ainda, infelizmente, uma mentalidade machista, ignorando a novidade do cristianismo que reconhece e proclama a igual dignidade e responsabilidade da mulher com relação ao homem.
A família é insubstituível para a serenidade pessoal e para a educação dos filhos. As mães que querem dedicar-se plenamente à educação de seus filhos e ao serviço da família devem ter as condições necessárias para poder fazê-lo, e para isso têm direito de contar com o apoio do Estado. De fato, o papel da mãe é fundamental para o futuro da sociedade.
O pai, por sua parte, tem o dever de ser verdadeiramente pai, que exerce sua indispensável responsabilidade e colaboração na educação de seus filhos. Os filhos, para seu crescimento integral, têm o direito de poder contar com o pai e com a mãe, para que cuidem deles e os acompanhem rumo à plenitude de sua vida. É necessária, pois, uma pastoral familiar intensa e vigorosa. É indispensável também promover políticas familiares autênticas que respondam aos direitos da família como sujeito social imprescindível. A família faz parte do bem dos povos e da humanidade inteira.
Os sacerdotes
Os primeiros promotores do discipulado e da missão são aqueles que foram chamados «para estar com Jesus e ser enviados a pregar» (cf. Mc 3,14), ou seja, os sacerdotes. Eles devem receber de modo preferencial a atenção e o cuidado paterno dos seus Bispos, pois são os primeiros agentes de uma autentica renovação da vida cristã no povo de Deus. A eles quero dirigir uma palavra de afeto paterno desejando «que o Senhor seja parte da sua herança e do seu cálice» (cf. Sl 16,5). Se o sacerdote fizer de Deus o fundamento e o centro de sua vida, então experimentará a alegria e a fecundidade da sua vocação. O sacerdote deve ser antes de tudo um «homem de Deus» (1Tim 6,11); um homem que conhece a Deus «em primeira mão», que cultiva uma profunda amizade pessoal com Jesus, que compartilha os «sentimentos de Jesus» (cf. Fil 2,5). Somente assim o sacerdote será capaz de levar Deus -- o Deus encarnado em Jesus Cristo -- aos homens, e de ser representante do seu amor. Para cumprir a sua altíssima missão deve possuir uma sólida estrutura espiritual e viver toda a existência animado pela fé, a esperança e a caridade. Tem de ser, como Jesus, um homem que procure, através da oração, o rosto e a vontade de Deus, cultivando igualmente sua preparação cultural e intelectual.
Queridos sacerdotes deste Continente e quantos que, como missionários, nele viestes a trabalhar: o Papa acompanha vossa atividade pastoral e deseja que estejam repletos de consolações e de esperança, e reza por vós.
Religiosos, religiosas e consagrados
Quero dirigir-me também aos religiosos, às religiosas e aos leigos e leigas consagrados. A sociedade latino-americana e caribenha tem necessidade do vosso testemunho: em um mundo que tantas vezes busca, sobretudo, o bem-estar, a riqueza e o prazer como finalidade da vida, e que exalta a liberdade prescindindo da verdade do homem criado por Deus, vós sois testemunhas de que existe outra forma de viver com sentido; lembrai aos vossos irmãos e irmãs que o Reino de Deus chegou; que a justiça e a verdade são possíveis se nos abrimos à presença amorosa de Deus nosso Pai, de Cristo nosso irmão e Senhor, do Espírito Santo nosso Consolador. Com generosidade e até ao heroísmo, continuai trabalhando para que na sociedade reine o amor, a justiça, a bondade, o serviço, a solidariedade conforme o carisma dos vossos fundadores. Abraçai com profunda alegria
vossa consagração, que é instrumento de santificação para vós e de redenção para vossos irmãos.
A Igreja da América Latina vos agradece pelo grande trabalho que vindes realizando ao longo dos séculos pelo Evangelho de Cristo a favor de vossos irmãos, principalmente pelos mais pobres e marginalizados. Convido a todos para que colaborem sempre com os Bispos, trabalhando unidos a eles que são os responsáveis pela pastoral. Exorto-vos também a uma obediência sincera à autoridade da Igreja. Não tenham outro ideal que não seja a santidade conforme os ensinamentos de vossos fundadores.
Os leigos
Nesta hora em que a Igreja deste Continente se entrega plenamente à sua vocação missionária, lembro aos leigos que são também Igreja, assembléia convocada por Cristo para levar seu testemunho ao mundo inteiro. Todos os homens e mulheres batizados devem tomar consciência de que foram configurados com Cristo Sacerdote, Profeta e Pastor, através do sacerdócio comum do Povo de Deus. Devem sentir-se co-responsáveis na construção da sociedade segundo os critérios do Evangelho, com entusiasmo e audácia, em comunhão com os seus Pastores.
São muitos os fiéis que pertencem a movimentos eclesiais, nos quais podemos ver os sinais da multiforme presença e ação santificadora do Espírito Santo na Igreja e na sociedade atual. Eles são chamados para levar ao mundo o testemunho de Jesus Cristo e ser fermento do amor de Deus na sociedade.
Os Jovens e a pastoral vocacional
Na América Latina a maioria da população está formada por jovens. A este respeito, devemos recordar-lhes que sua vocação é ser amigos de Cristo, discípulos, sentinelas do amanhã, como costumava dizer o meu Predecessor João Paulo II. Os jovens não temem o sacrifício, mas, sim, uma vida sem sentido. São sensíveis à chamada de Cristo que os convida a segui-lo. Podem responder a essa chamada como sacerdotes, como consagrados e consagradas, ou ainda como pais e mães de família, dedicados totalmente a servir aos seus irmãos com todo o seu tempo, sua capacidade de entrega e com a vida inteira. Os jovens encaram a existência como uma constante descoberta, não se limitando às modas e tendências comuns, indo mais além com uma curiosidade radical acerca do sentido da vida, e de Deus Pai-Criador e Deus-Filho Redentor no seio da família humana. Eles devem-se comprometer por uma constante renovação do mundo à luz de Deus. Mais ainda: cabe-lhes a tarefa de opor-se às fáceis ilusões da felicidade imediata e dos paraísos enganosos da droga, do prazer, do álcool, junto com todas as formas de violência.
6. “Fica conosco”
Os trabalhos desta V Conferência nos levam a fazer nossa a súplica dos discípulos de Emaús:
«Fica conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando» (Lc 24, 29).
Ficai conosco, Senhor, acompanhai-nos, ainda que nem sempre tenhamos sabido reconhecer-vos. Ficai conosco, porque as sombras vão se tornando densas ao nosso redor, e vós sois a Luz; em nossos corações se insinua a desesperança, e vós nos fazeis arder com a certeza da Páscoa. Estamos cansados do caminho, mas vós nos confortais na fração do pão para anunciar aos nossos irmãos que na verdade vós ressuscitastes e nos destes a missão de ser testemunhas da vossa ressurreição.
Ficai conosco, Senhor, quando ao redor da nossa fé católica surgem as névoas da dúvida, do cansaço ou da dificuldade; vós, que sois a própria Verdade como revelador do Pai, iluminai nossas mentes com a vossa Palavra; ajudai-nos a sentir a beleza de crer em vós.
Ficai em nossas famílias, iluminai-as em suas dúvidas, sustentai-as em suas dificuldades, consolai-as em seus sofrimentos e na fadiga de cada dia, quando ao redor delas se acumulam sombras que ameaçam sua unidade e sua natureza. Vós que sois a Vida, permanecei em nossos lares, para que continuem sendo ninhos onde nasça a vida humana abundante e generosamente, onde se acolha, se ame, se respeite a vida desde a sua concepção até o seu término natural.
Ficai, Senhor, com aqueles que em nossas sociedade são mais vulneráveis; ficai com os pobres, com os indígenas e com os afro-americanos, que nem sempre encontraram espaços e apoio para expressar a riqueza de sua cultura e a sabedoria de sua identidade. Ficai, Senhor, com nossas crianças e com nossos jovens, que são a esperança e a riqueza de nosso Continente; protegei-os de tantas insídias que atentam contra a sua inocência e contra suas legítimas esperanças. Ó bom Pastor, ficai com nossos anciãos e com nossos doentes. Fortalecei todos em sua fé, para que sejam vossos discípulos e missionários!
Conclusão
Ao concluir minha permanência entre vós, desejo invocar a proteção da Mãe de Deus e Mãe da Igreja sobre vossas pessoas e sobre toda a América Latina e o Caribe. Imploro de forma especial a Nossa Senhora -- sob a invocação de Guadalupe, Padroeira da América, e de Aparecida, Padroeira do Brasil -- que vos acompanhe em vossa bela e exigente tarefa pastoral. A ela confio o Povo de Deus nesta etapa do terceiro milênio cristão. A ela peço também que guie os trabalhos e reflexões desta Conferência Geral, e que abençoe com abundantes dons os queridos povos deste Continente.